O que muda para empresas que antecipam recebíveis em face da nova tributação de consumo
O ambiente tributário do Brasil passa por uma transformação substancial com a entrada do novo regime de tributação de consumo que institui o Lei Complementar nº 214/2025 (LC 214/2025). Uma das vertentes menos visíveis, mas de grande impacto, refere-se às operações de antecipação de recebíveis realizadas por empresas de factoring, securitizadoras e entidades afins. Esse segmento, que tradicionalmente opera com desconto de créditos junto ao fornecedor ou cedente de títulos, agora precisa repensar modelos contratuais, precificação, alocação de riscos e estrutura tributária.
Estrutura típica de antecipação de recebíveis
Normalmente, o fluxo de uma operação de antecipação envolve três partes:
- o fornecedor original (B) que detém o crédito contra o devedor (A);
- a empresa de factoring ou securitização (C) que antecipa o valor a B mediante deságio;
- o devedor (A) que pagará o crédito no vencimento ao portador ou à entidade que assumiu o direito.
Na lógica tradicional, o foco ficava em B e C quanto à governança de crédito, sem que a tributação capturasse integralmente o efeito econômico da transação em termos de deságio e relação entre partes intermediadas.
O que introduz a LC 214/2025
Com a LC 214/2025, as operações de factoring e antecipação de recebíveis passam a ter tratamento específico ao serem qualificadas como “serviços financeiros” para efeitos de tributação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Isso gera impactos relevantes:
- A base de cálculo passa a considerar o deságio aplicado — ou seja, a diferença entre o valor do crédito e o valor pago pela antecipação — com deduções permitidas (como despesas de captação, de securitização, perdas na cobrança) e sujeita à alíquota que será fixada.
- Juros, multas e encargos relacionados aos créditos antecipados também entram no escopo do novo tributo, aumentando a complexidade de apuração e risco tributário.
- Surge incerteza sobre quem é o sujeito passivo: se permanece B (fornecedor original) ou desloca-se para C (empresa de antecipação), especialmente no cenário de cessão de crédito e repasse de obrigações.
- A precificação dos contratos deve considerar o novo tributo “por fora” ou “por dentro” — isso afeta o deságio, a rentabilidade da operação de antecipação e o risco de inadimplência. Por exemplo: se o deságio for calculado já com tributação, isso mudará o impacto líquido para C e para B.
Impactos práticos para empresas
- Revisão de contratos e estrutura comercial: Empresas de factoring e securitização precisam avaliar se seus contratos preveem cláusulas que atribuem ou limitam os efeitos tributários da nova incidência, e ajustar premissas de deságio, risco de crédito e cobranças posteriores.
- Sistemas de compliance tributário, TI e contabilidade: É imprescindível que ERPs, sistemas de faturamento e modelos de crédito sejam atualizados para integrar campos de tributação, deduções permitidas, monitoramento de encargos financeiros e apropriação de créditos ou perdas.
- Precificação e risco de retorno: A antecipação de título, que antes podia ignorar impacto tributário adicional, agora deve incorporar a tributação específica no cenário estrutural. Isso reduz margem de manobra e exige maior governança de riscos.
- Planejamento tributário e contingências: Empresas que anteciparam títulos priorizando fluxo devem verificar se os registros de deságio, multas, encargos foram corretamente formalizados e documentados para suportar eventual fiscalização ou autuação.
- Governança societária e estratégica: A mudança regula o papel das factorings e securitizadoras como participantes tributários ativos no novo regime e exige que seus responsáveis incluam essa dimensão no comitê de governança tributária.
Questões em aberto e desafios
Apesar do avanço normativo, há lacunas que geram incerteza:
- Está ainda indefinido exatamente como será tratada a responsabilidade tributária em operações cedidas ou com diversos intermediários.
- Alíquotas definitivas do IBS e da CBS para o setor ainda não estão total ou publicamente fixadas, o que dificulta simulações precisas de custo.
- A regulamentação complementar (órgãos reguladores, normas técnicas) precisará clarificar como será o mecanismo de retenção, o local da operação para fins de tributação, qual parte do valor será base tributável, e quem poderá se apropriar créditos relativos às operações.
- O impacto sobre cadeias longas de antecipação, com múltiplos níveis de cessão de recebíveis (ex: B → C1 → C2) ainda carece de definição operacional uniforme.
Recomendações estratégicas
- Avaliar agora vários cenários de antecipação de recebíveis considerando diferentes alíquotas e estruturas alternativas para mitigar efeitos tributários, preparando plano de ação para ajustes contratuais ou de governança.
- Atualizar a matriz de risco tributário corporativo para incluir o segmento de antecipação de recebíveis, factoring e securitização, estabelecendo controles de monitoramento, documentação e auditoria interna.
- Revistar modelos de remuneração de factoring e securitizadoras — o deságio, os encargos de cobrança, multas e juros devem refletir o custo adicional tributário do novo regime.
- Iniciar adaptação tecnológica: sistemas de emissão, de contratos, de faturamento e de registro de recebíveis precisam estar prontos para alteração de leiautes, rotina de emissão de notas/debitos, relatórios de crédito e acompanhamento tributário.
- Monitorar a regulamentação que venha a ser editada, participar de consultas públicas ou grupos de trabalho para antecipar adaptações e evitar surpresas de interpretação fiscal.
A antecipação de recebíveis — prática já consolidada no mercado financeiro e corporativo — agora passa a estar sob nova ótica tributária com a reforma. O setor de factoring e securitização deve encarar a mudança não como mero ajuste fiscal, mas como reestruturação de modelo de negócios, governança e compliance. As empresas que anteciparem esse movimento estarão com vantagem competitiva e menor exposição a contingências.