A aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 pelo Senado Federal, em setembro de 2025, marca a consolidação do segundo eixo normativo da Reforma Tributária do Consumo. O texto complementa a Lei Complementar nº 214/2025, aprofundando a estrutura do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), redefinindo regras de arrecadação, fiscalização e julgamento administrativo, além de ajustar aspectos relativos ao ITCMD e ao ITBI.
Mais do que um marco legislativo, o PLP 108/2024 representa um teste prático de coerência entre os princípios constitucionais da simplicidade, da cooperação e da neutralidade — pilares que sustentam a nova tributação sobre o consumo. Enquanto o contencioso administrativo avança rumo à uniformização, a etapa de fiscalização ainda suscita dúvidas operacionais que podem comprometer a efetividade das promessas de integração entre tributos federais, estaduais e municipais.
Estrutura do contencioso: da fragmentação à harmonização institucional
Um dos principais méritos do texto aprovado é a consolidação de um sistema administrativo de julgamento com três instâncias. O modelo confere maior previsibilidade às disputas tributárias relacionadas ao IBS e à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que compartilham a mesma base de incidência.
O contencioso inicia-se com a impugnação do lançamento, julgada por câmaras virtuais regionais. Em seguida, a segunda instância examina os recursos voluntários ou de ofício. O ponto mais inovador, contudo, está na criação da Câmara Nacional de Integração do Contencioso Administrativo do IBS e da CBS, uma terceira instância destinada a uniformizar entendimentos divergentes entre o Comitê Gestor do IBS (CGIBS) e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).
Essa nova câmara, de composição paritária entre representantes da Fazenda Nacional e julgadores do Comitê Gestor, tem competência para decidir recursos especiais com efeito vinculante, assegurando coerência interpretativa e estabilidade normativa. Segundo o texto aprovado, também haverá integração entre os sistemas de soluções de consulta de IBS e CBS — um avanço técnico que tende a reduzir a assimetria de entendimentos administrativos que, no passado, alimentava grande parte do contencioso judicial.
Na prática, essa uniformização poderá reduzir litígios de alto valor e dar mais previsibilidade às empresas, sobretudo àquelas com operações interestaduais e interestaduais complexas, nas quais as divergências de interpretação costumam ser mais onerosas.
Fiscalização: integração limitada e o risco de autuações múltiplas
Se o contencioso avança, a fiscalização segue sendo um ponto de tensão. O PLP 108/2024 prevê a integração entre as administrações tributárias apenas em hipóteses de pequeno valor, mantendo a autonomia fiscalizatória de cada ente — União, estados e municípios — para os demais casos.
Essa restrição, mantida no artigo 4º, §7º, tem potencial para comprometer o princípio da simplicidade. Em um sistema de tributos sobre consumo com base unificada, a existência de fiscalizações paralelas da CBS e do IBS tende a gerar autuações divergentes sobre a mesma operação, multiplicando custos de conformidade e o risco de contenciosos repetidos.
Além disso, a tributação no destino — um dos pilares da reforma — amplia o número de entes com competência fiscalizatória. Cada operação interestadual pode gerar obrigações acessórias em múltiplas jurisdições, o que, sem coordenação efetiva, torna-se operacionalmente inviável. O texto delega ao Comitê Gestor do IBS a regulamentação das regras de integração entre fiscos, o que ainda gera incertezas quanto aos mecanismos práticos de cooperação, compartilhamento de informações e auditorias conjuntas.
Impactos práticos por porte e perfil empresarial
Grandes grupos econômicos, com atuação nacional e múltiplos estabelecimentos, precisarão adaptar sistemas de compliance para lidar com diferentes níveis de fiscalização, o que pode implicar investimentos significativos em governança tributária e em automação de obrigações acessórias.
Empresas de médio porte, especialmente as que operam em mais de um estado, enfrentarão o desafio de acompanhar a regulamentação do Comitê Gestor e entender como ocorrerá a integração com fiscos locais.
Micro e pequenas empresas, embora beneficiadas pelo Simples Nacional, poderão ser afetadas indiretamente por interpretações divergentes entre estados e municípios na etapa de transição do IBS, especialmente em operações interestaduais com incidência diferenciada.
Lacunas e riscos de insegurança jurídica
Apesar do avanço institucional do contencioso, persistem lacunas importantes. O PLP 108/2024 não define com clareza os critérios de prioridade e coordenação entre fiscos quando houver fiscalização simultânea. Também não explicita se as autuações poderão ser consolidadas em processos únicos perante o CGIBS — ponto crucial para a redução da litigiosidade.
Há ainda o risco de duplicidade de autuações com fundamentos distintos, caso os fiscos federal e subnacionais interpretem de forma diferente um mesmo fato gerador. Tal cenário pode anular, na prática, os ganhos de eficiência buscados pela criação da CBS e do IBS.
Conclusão e recomendações práticas
O PLP 108/2024 consolida avanços relevantes na governança do contencioso administrativo, criando mecanismos de uniformização que tendem a reforçar a segurança jurídica e a coerência das decisões fiscais. Contudo, a manutenção de uma fiscalização descentralizada e parcialmente integrada ameaça a efetividade dos princípios de simplicidade e cooperação.
Checklist de atenção para contribuintes:
- Monitorar os regulamentos futuros do Comitê Gestor do IBS sobre integração fiscalizatória.
- Revisar políticas internas de compliance tributário, especialmente para operações interestaduais.
- Preparar sistemas para eventuais cruzamentos de dados entre fiscos distintos.
- Avaliar a possibilidade de autuações concorrentes e definir estratégias preventivas de defesa administrativa.
Em síntese, o PLP 108/2024 avança em direção a um contencioso mais racional e previsível, mas a efetiva simplificação da Reforma Tributária dependerá de como o país enfrentará o desafio da coordenação fiscalizatória entre esferas de governo — o ponto ainda mais sensível de todo o novo modelo tributário.